Ser e Nada de Jean-Paul Sartre

jean dubuffet Skedaddle - L'escampette

Ser e Nada é a maior obra de Jean-Paul Sartre e pode ser considerada a obra mais completa da filosofia existencialista. Publicado em 1943 (sob a Ocupação alemã), Sartre o apresenta como um ensaio fenomenológico sobre a consciência. Mas, na verdade, é muito mais do que um simples tratado fenomenológico: Sartre reinventa a ontologia e a metafísica, partindo das conquistas da fenomenologia de Husserl e da filosofia de Heidegger, desenvolvidas em Ser e Tempo.

Resumir o Ser e o Nada é um desafio para qualquer comentário porque a obra, indigerível, percorre mais de 700 páginas: deve, portanto, ser mais estudada do que lida, tanto a complexidade do pensamento de Sartre quanto a novidade de suas ideias são impressionantes.

Apresentamos a seguir uma análise dos grandes temas de O ser e o nada, a partir da concepção sartreana dos fenômenos, da consciência, da intersubjetividade e da má-fé.

Nota: Jean-Paul Sartre popularizará essas grandes teses em sua Conferência O existencialismo é um humanismo.

Fenômenos no Ser e no Nada

Na introdução, Sartre detalha as razões de sua rejeição ao conceito kantiano de númeno. Kant distingue fenômenos, objetos da experiência sensível, de noumena, ou seja, coisas em si mesmas, cujo conhecimento nos escapa. Contra Kant, Sartre afirma que a aparência de um fenômeno é pura e absoluta. O númeno não é inacessível, simplesmente não está lá. A aparência é a única realidade. A partir desse ponto de partida, Sartre argumenta que o mundo pode ser visto como uma série infinita de aparências finitas. Tal perspectiva permite eliminar os dualismos clássicos da filosofia, em particular a dualidade interior/exterior.

A consciência é o que permite que o mundo exista. Sem ela não haveria objetos, nem árvores, nem rochas: apenas o ser. A consciência é sempre intencional, está ciente de algo. A consciência visa o mundo e o faz acontecer como um mundo para uma consciência. A “lei do ser do para-si é a sua presença no mundo”. A consciência é, portanto, injustificável, contingente e factícia.

Ser-em-si e ser-para-si no ser e no nada

Sartre então descreve a distinção hegeliana que estrutura sua ontologia: aquela entre ser inconsciente (ser-em-si) e ser consciente (ser-para-si). O em-si é fixo, pleno e não tem capacidade de mudar, não tem consciência de si. O Ser-para-si tem consciência de sua própria consciência, mas também é incompleto, aberto, em construção. Para Sartre, essa indefinição, essa incompletude é o que define o homem. Como o ser-para-si não tem essência predeterminada, ele é forçado a se criar a partir do nada. Para Sartre, o nada é a característica que define o sem-para-si. Uma árvore é uma árvore e não tem capacidade de alterar ou criar seu ser. O homem, ao contrário, se faz agindo no mundo. Em vez de ser apenas como a árvore, o homem existe. Existir significa não ser. Sartre vai ainda mais longe ao afirmar que “O homem é o que não é e não é o que é”. De fato, o homem é dotado de uma consciência que lhe permite olhar para si mesmo, ele é uma consciência da consciência: assim, o tímido que se dá conta de sua timidez não será mais um tímido ingênuo, mas um tímido consciente, portanto diferente.

Se o homem escolhe a si mesmo, é para dar sentido às suas ações: o indivíduo se projeta atribuindo sentido à sua ação, a partir de suas características concretas (como sua natureza física) para melhor negá-las.

O paradoxo aqui é grande. O para-si deseja tornar-se um ser-em-si, fazer de sua subjetividade um objeto. O ser-para-si é consciência, mas a instância dessa consciência faz do seu próprio ser uma questão, uma fissura irreconciliável entre o ser-em-si e o ser-para-si. O sonho do para-si é ser em-si.

Graças à consciência do que não é, o para-si torna-se o que é: o nada, completamente livre no mundo, uma tela em branco sobre a qual tudo deve ser criado. Ele conclui que o ser-para-si é o ser pelo qual o nada vem ao mundo e, portanto, que o ser-para-si é uma falta, dividida entre sua unidade e sua dualidade.

A temporalização do Para-si

O Para-si como falta, e portanto como tarefa, revela-se na temporalidade. Com efeito, o Para-si não é idêntico ao seu passado nem ao seu futuro. Já não é o que era e ainda não é o que será: graças ao tempo, o homem nunca coincide consigo mesmo. Sartre descreve os êxtases temporais (passado/presente/futuro):

  • O passado corresponde à facticidade de uma vida humana que não pode escolher o que já passou. O passado é o que devo ser, mas ao mesmo tempo não sou porque o ultrapassei. O passado é sempre retomado e ultrapassado.
  • O presente não existe realmente porque é uma fuga para o futuro. O exemplo do cigarro diz muito: quero fumar um cigarro, pretendo acender no futuro.
  • O futuro abre possibilidades para a liberdade do para-si. Mas liberdade e facticidade formam uma incoerência dentro do Para-si, gerando instabilidade. Sartre retoma a concepção heideggeriana: o homem é um “ser do distante”, ele não é, ele se torna possível. É, portanto, o futuro que constitui a temporalidade maior do Para-Si.

O Outro e o Para-Si:

O Outro aparece para Sartre como o mediador entre mim e eu. Eu sou como os outros me veem. O Para-Si refere-se assim aos Para-Outros. O Outro me pré-existe. Não se constitui o outro, encontra-se com ele: não posso absorver o outro em mim, nem constituí-lo em puro objeto porque é ele quem me congela em-si. O Outro prova que tenho meu fundamento fora de mim, me dá um fora, uma natureza: “Minha queda original é a existência do Outro”. Minha defesa, minha reação será tentar fazer dos outros um objeto por sua vez.

O corpo no Ser e no Nada

Sartre busca repensar a relação corpo/mente tal como vem sendo desenvolvida desde Descartes. Assim, ele afirma que o corpo não está unido à consciência, é “inteiramente psíquico”. O corpo é, portanto, mais do que um simples componente do Para-si, é um Para-si em si mesmo, e não um Em-si no Para-si. Não há identificação entre o corpo e a consciência, mas sim uma relação existencial entre o corpo e a consciência: “a consciência existe no seu corpo”.

Má fé no Ser e no Nada

Essa incoerência entre facticidade e liberdade se manifesta na má-fé. O Para-si sendo uma tarefa, forma projetos. Dentre os diversos tipos de projetos, a má-fé é importante para apreender o ser humano. A análise de Sartre sobre o projeto de má-fé se baseia em exemplos marcantes: os gestos maquinistas do garçom. Ao se comportar dessa maneira, o garçom se identifica totalmente com seu papel de garçom, no modo dos seres em si. Em outras palavras, o garçom rejeita seu Para-si livre para deslizar para a facticidade. Ele procura, assim, liberar-se de sua liberdade, isto é, da obrigação de decidir por si mesmo. Porém, a consciência é transparente para si mesma, não pode ignorar este truque: a má-fé é uma auto-ilusão. O conceito de Sartre oferece, assim, uma alternativa às teorias psicanalíticas que fazem da consciência uma emanação do inconsciente. Sartre também detalha em Ser e Nada sua teoria da psicanálise existencial.

O projeto fundamental em O Ser e o Nada

Sartre descreve o projeto fundamental do Para-si como o desejo de ser. Esse desejo é universal e pode assumir uma das três formas:

  • transformação direta do para-si em um em-si
  • o para-si busca tornar-se seu próprio fundamento (tornar-se Deus).
  • o para-si visa outro modo de ser.

Nenhum dos objetivos descritos é alcançável. Todas as existências humanas são dominadas por tal desejo. Testemunhe suas descrições de projetos amorosos, sádicos e masoquistas. A natureza metafísica do homem é tornar-se um em-si-para-si, Deus de certa forma.

Desejo no Ser e no Nada

O desejo é o desejo não só de ter, mas sobretudo de ser. O mesmo acontece com o amor: o amante procura possuir o ser amado e, portanto, integrá-lo em seu ser: é a satisfação do desejo. Mas ele deseja ao mesmo tempo que o amado permaneça além de seu ser como o outro que ele deseja, ou seja, deseja permanecer no estado de desejar. O desejo é contraditório porque o ser do desejo é, portanto, incompatível com sua satisfação.

A pergunta dos outros

O sujeito não é solipsista, ele se confronta com outros sujeitos: só nos damos conta de nós mesmos quando nos confrontamos com o olhar alheio (a experiência da vergonha). O olhar do outro objetivo nos fixa como uma fotografia em uma determinada função: o outro nos dá um fora, uma natureza. Assim, o olhar dos outros nos priva da liberdade de nos fazer cair no em-si. O Outro é o agente da minha queda ontológica.

Autenticidade

Se Sartre aponta as relações humanas como impossíveis, fadadas ao fracasso, o fato é que ele atribui ao homem uma tarefa possível: assumir-se plenamente como para si. A autenticidade consiste em escolher o mundo, escolher-se sem se refugiar no conforto do ser, sem sucumbir às sereias da má fé.

Conclusão

O homem é certamente “uma paixão inútil”, mas a sua tarefa é tornar-se digno da sua condição. Esta lição (melhor: esta intuição), que é basicamente a de todo existencialismo sério, perpassa a obra de Jean-Paul Sartre e encontrará sua expressão em seu teatro, sua literatura e sua filosofia, em que o existencialismo tentará desdobrar esta intuição.

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